Luísa Diogo em “Grande Entrevista”.
A antiga primeira-ministra diz que deixa o Parlamento para se dedicar aos negócios privados, pois, durante os seus mandatos como governante, não confundia agendas. Quando recebia empresários, estes sabiam que não discutiam com um concorrente. Por isso, falavam-lhe abertamente. Estas são partes de uma entrevista que passa na íntegra, esta noite, na STV.
C ompleta, amanhã, 55 anos de idade. Quando olha para trás, que imagem tem do seu percurso profissional?
Foi um percurso normal, de uma mulher moçambicana, com grandes desafios e algumas realizações, com muita honra de ter servido em várias posições o nosso país e por continuar a servir o Estado através do meu partido.
Quando e como entra na política activa?
Dos meus 55 anos que vou fazer, cerca de 40 dediquei à vida política. Na década de 80, altura em que comecei a trabalhar no Ministério das Finanças, já era militante do partido, na base da simpatia e não pelo cartão, e foi nessa altura que percebi que tinha uma consciência patriótica. No Ministério das Finanças, comecei como técnica do Gabinete de Estudos, na área de investimentos, depois subi para chefe de secção, e, mais tarde, para chefe de repartição. Depois tornei-me chefe de departamento, directora-adjunta, directora nacional, vice-ministra, ministra do Plano e Finanças e primeira-ministra. Na área política, comecei a militar, na altura, em Bela Vista, porque, quando viemos de Tete, o meu pai ficou colocado lá, em Matutuíne. Nessa altura era jovem, fazia trabalhos para OJM, OMM, participava em trabalhos de alfabetização e educação de adultos, actividades culturais e, mais tarde, vim a trabalhar na área de mobilização. Durante as campanhas eleitorais, militei em Tete, nas zonas de Angónia, Tsangano, e mais tarde como chefe da Brigada Central a nível da Zambézia e também de Gaza, membro do Comité Central, da comissão política e, agora, membro do Comité Central. A nível do Estado, depois de ter cessado funções, em 2010, fiquei no parlamento como deputada da Assembleia da República e, neste momento, decidi suspender o meu mandato para fazer outras actividades.
Um dos grandes debates da actualidade é a questão dos mega-projectos. Ora, a Mozal foi negociada em 1996 e construída em 1998. Na altura, o projecto teve muitos benefícios fiscais. Não acha que é altura de se renegociar com a Mozal? Aliás, estudos revelam que em cada 20 dólares de encaixe dos accionistas da Mozal, apenas um fica com o Estado moçambicano...
Eu penso que devemos evitar fazer uma abordagem deste tipo a um determinado projecto com este enfoque, criando desconforto no parceiro que está nesse projecto. Eu penso que devemos fazer uma abordagem mais global, de um contexto específico da economia moçambicana. Na altura em que a Mozal foi negociada, o país tinha acabado de fazer as eleições multipartidárias e estava a arrancar com a reconstrução nacional. Recordo que, em 1996, mesmo o índice de inflação, até ao fim do ano 1995 e princípios de 1996, rondava pouco mais de 50%, isto significa que o contexto nacional, em termos de infra-estruturas económicas, estradas, pontes, abastecimento de água, a nível da educação, o índice de analfabetismo era extremamente elevado. Mesmo em termos de procedimentos técnico-administrativo para aprovação de projectos, lembro-me que a Mozal foi negociada por uma equipa específica, que foi constituída na base de quadros escolhidos em cada sector, do Ministério do Plano e Finanças, da Indústria e Comércio, da Agricultura, da Construção e Águas. Criou-se um grupo e foi-lhes dito: “Nós queremos este projecto em Moçambique e o objectivo é que ele seja a nossa sala de visitas e de atracção de investimentos. Negoceiem e vamos fazer o devido acompanhamento, dando as devidas orientações”. Então, o código de investimento existente na altura era baseado nas condições objectivas do país. Neste momento, Moçambique é um outro país, evoluiu, isto é reconhecido por nós os moçambicanos e deve ser reconhecido pelos parceiros internacionais, sejam os investidores ou parceiros de apoio ao próprio Orçamento do Estado. Isto significa que o código de investimento preparado por Moçambique, com as facilidades de investir que apresenta hoje, é diferente, as exigências são diferentes. Quando nos sentámos com o parceiro que investiu na altura, não devemos dizer-lhe que ‘olha, você não paga nada’, devemos mostrar-lhe que o contexto mudou, ele tem outro tipo de condições no país e que é verdade que construiu uma engenharia financeira do projecto, olhando para determinados indicadores económicos, mas agora a condição mudou. Há necessidade de vermos o que se pode fazer para partilharmos melhor os resultados do projecto. Ainda digo mais: o código de investimento actualmente existente em Moçambique não é um produto acabado, porque o país continua a evoluir, o tipo de incentivos que damos agora, eu acredito que daqui a quinze anos não vamos dar. O que dávamos há dez anos não é o que damos hoje. Eu recordo-me que, quando nós andávamos pelo mundo a fazer a atracção de investimentos, lançar o nome de Moçambique no mercado internacional, fazíamos uma introdução de cerca de dez minutos, as pessoas olhavam para nós e diziam que é a ministra está a falar, é natural que fale bem de Moçambique, mas logo a seguir eu dava a palavra ao homem da Mozal. Ele pegava no microfone e todo o mundo ficava atento, porque se tratando de um investidor a falar, eles acreditavam mais, e diziam: ‘Se esta empresa está a aplicar pouco mais de dois biliões de dólares naquele país, por que eu não posso aplicar 600 milhões de dólares ou um bilião de dólares? Então, era uma forma de atrair investimentos para o nosso país’.
É notável que as vozes à volta das renegociações dos mega-projectos se intensificam. Como é que acha que o governo deveria abordar este assunto?
Eu penso que devemos abordar tal como temos abordado até agora, com serenidade. Segundo, temos que estar juntos. Na altura, dizíamos ajuda externa, a seguir dizíamos dívida e, agora, comércio. Este triângulo deve funcionar efectivamente. Os parceiros de desenvolvimento na área de ajuda externa, que passaram a ser parceiros na área da dívida externa, criando espaços para Moçambique investir em diversos sectores, estes mesmos parceiros devem ter a mesma coragem, persistência, clareza e visão, quando abordam a área de comércio, que significa investimento. Ou seja, devemos conversar com eles da mesma maneira, porque estas multinacionais que investem estão em determinados países, como Japão, Reino Unido, Estados Unidos da América, isto quer dizer que, quando nós abordamos um investidor desta natureza, temos que ter cuidado, para que as relações diplomáticas não sejam afectadas, para não criarmos hostilidades, para que eles nos ajudem neste processo de renegociação. O importante é saber fazer estas renegociações, com a devida serenidade, sem grandes emoções, e nada de campanhas, porque pode deteriorar a imagem dos investimentos que Moçambique tem actualmente.
Para já, julga que estão criadas condições para o governo colocar a proposta de renegociação dos mega-projectos com as multinacionais?
Eu penso que não tem que haver momentos certos, como se a Lurdes Mutola fosse arrancar para correr e atingir a meta. Cada projecto tem o seu momento e a abordagem deve deslizar. não pode ser uma abordagem estanque, do tipo ‘olha, eu vim aqui, quero renegociar o seu projecto’. Tem de ser uma abordagem que é para lá, porque estes projectos trabalham em diversas áreas. Por exemplo, a Mozal teve as fases 1 e 2, e tem vindo a falar na fase 3. Então, com a Mozal, há abordagens muito seguras e tranquilas em relação a Moçambique. quer dizer que a Mozal veio para ficar e quer dialogar, ficar bem com as autoridades, e penso que nós moçambicanos temos que saber fazer as coisas.
Olhando para as recentes descobertas dos recursos, pode concluir -se que, quando mal gerida a riqueza proveniente deles, pode gerar maldição, provocando conflitos e guerras, como em alguns pontos do continente africano. Que políticas o país deve adoptar, de forma a evitar estes males?
Eu penso que as estratégias de desenvolvimento do país em relação aos seus pilares devem continuar válidas. No primeiro pilar, a unidade nacional, a paz, a democracia devem ser sempre a base para o desenvolvimento do país. Este é o pilar que nos dá a razão de ser como moçambicanos. A paz e a democracia são os que consubstanciam a que esta nação continue estável e forte. Por um lado, a democracia permite que nós dialoguemos e aceitemos as diferenças. Por outro lado, a paz é construída na base desse entendimento, dessa acomodação que os moçambicanos têm, e eu creio que a paz começa dentro de cada um de nós. Se uma pessoa parece estar sempre zangada consigo mesma, naturalmente, ela não consegue irradiar a paz. O segundo pilar é o do Estado moçambicano, que nasceu em 1975 e está a crescer e fortalecer-se. O Estado forte deve demonstrar que é capaz de assegurar aos cidadãos um ambiente em que possam resolver os seus problemas, como pessoas, indivíduos, sociedade e como famílias, portanto, este Estado deve ter a sua força, que é demonstrada pela capacidade que tem de fazer com que os moçambicanos se sintam tranquilos e em paz, sintam a justiça sobre eles próprios e sintam que há uma justiça social para eles realizarem as suas actividades. E finalmente, o terceiro pilar, que é o do combate à pobreza e o desenvolvimento. Eu acho que este pilar é o mais complexo da estratégia de desenvolvimento de Moçambique, e é por isso que os moçambicanos se antecipam sempre no seu debate. Neste momento, os moçambicanos estão a debater os proveitos provenientes dos recursos naturais, especificamente os minerais, de que só daqui a oito ou dez anos vamos ver os resultados. Eu acho que isso é bom, porque os moçambicanos querem fazer de maneira diferente dos outros países, querem ser capazes de prevenir, de influenciar as decisões. Então, este pilar de combate à pobreza e desenvolvimento tem consigo este conceito de inclusão que acabou de referir. Nós não estamos a dizer que é pôr as pessoas numa fila de espera e começar a distribuir pão. A inclusão desenvolve-se através da participação de cada um de nós no processo. Para tal, as pessoas têm que ser formadas, têm que ter acesso ao conhecimento relevante. É necessário que todos os moçambicanos participem em pleno e efectivamente no processo de desenvolvimento, para que a riqueza seja suficiente para todos. A questão da inclusão é importante no combate à pobreza. E, finalmente, o enquadramento de Moçambique no contexto mundial, continental e na região da SADC, que é um aspecto ligado à cooperação internacional, a amizade com todos, sempre dentro da cultura de reduzir qualquer possibilidade de inimigos e ampliar mais os amigos. Estes pilares de desenvolvimento são fundamentais para contextualizar a exploração dos recursos minerais. Não podem ser vistos de uma forma isolada, mas sim dentro de um contexto em que outros recursos naturais também mereçam a devida prioridade, porque nem todos os 22 milhões de habitantes devem viver à base dos recursos naturais, mas o efeito multiplicador destes recursos é conquistável.
Para atrair investimentos ao país, é preciso que a estabilidade seja plena. Olhando actualmente para os pronunciamentos de Afonso Dhlakama e aquilo que são os objectivos do país, como é que interpreta estes discursos?
Eu acho que este é um elemento que o país precisa de ultrapassar, um elemento que não deve ser ignorado, nalguns casos pode tornar-se ameaçador, noutros pelo menos incomodativo. É daquelas coisas que, por vezes, pensamos que estamos a esquecer, mas está lá sempre pendente. Então, é bom ver a maneira como os moçambicanos estão a abordar este assunto. eles estão permanentemente atentos a esta questão, através do seu posicionamento individual, colectivo, das suas religiões, das ONG, através das próprias comunidades, do grupo académico, da empresa, tanto nos momentos em que sentem que há sinais específicos por parte do governo, como nos momentos em que não há sinais específicos. Este movimento global do país, individual e colectivo de que quer uma paz plena, eu penso que é uma abordagem boa, e uma pressão necessária para que, efectivamente, desapareça essa sensação de que alguma coisa está por se resolver.
O discurso de combate à pobreza parece não estar a trazer resultados desejados. Ora vejamos: o relatório do PNUD sobre o Índice de Desenvolvimento Humano coloca o país na lista dos mais pobres do mundo, quase na cauda. Internamente, o IOF, Inquérito Sobre o Orçamento Familiar, mostrou que o número de cidadãos pobres aumentou. Será que as políticas traçadas estão a falhar?
Eu aprendi a respeitar as instituições do Estado, respeito o Instituto Nacional de Estatística, primeiro, por conhecer o percurso que esta instituição fez. É um instituto credível a nível nacional, regional e internacional, é o segundo melhor instituto de Estatística em África, apoia países da região, sem exclusão, dá aconselhamento ao Instituto de Estatística da África do Sul. Tenho muita dificuldade de contestar números divulgados pelo INE. Quando a instituição divulga números, goste ou não deles, eu tenho a disciplina de os aceitar. Em 1997, quando, pela primeira vez, o Instituto Nacional de Estatística trouxe o resultado do inquérito sobre a pobreza das populações, feito durante doze meses, recordo-me, foi de Março de 1996 a Abril de 1997, os mesmos eram muito incomodativos, não eram animadores, tínhamos o nível de pobreza extremamente alto, havia províncias como Sofala, onde tínhamos 89% de pobres, Zambézia tinha indicadores extremamente alarmantes, Gaza tinha indicadores assustadores. então, a dada altura, eu tive que ir falar com o Presidente Chissano. Apresentei-lhe os resultados, lembrei-lhe que tínhamos eleições no ano seguinte e perguntei-lhe o que fazia com aqueles resultados. A resposta dele foi: “O seu compromisso com este país não termina nem começa com as eleições autárquicas. O seu compromisso e o da Frelimo com este país é perene, então, estes dados devem ser divulgados, mas com uma solução junto a eles. Daí nós fizemos uma consulta geral para identificar as causas ou determinantes daquele resultado e aí fomos tirar as conclusões: o nível de abastecimento de água era extremamente baixo, as distâncias percorridas para buscar água e saúde eram grande. De seguida, implementámos planos de acção para combater esses problemas. Com isso, quero dizer que há dados do INE que às vezes incomodam, mas o que é necessário é olhar para eles, debatê-los e organizar-se para os enfrentar.
A sua opção de deixar o parlamento para se dedicar à presidência do Barclays causou certa estranheza. A que se deveu? Será que está desiludida com a política?
Não. Eu gosto de política, conforme deve ter notado, agora que estamos a falar de política, os meus olhos estão a brilhar mais. Eu acho que é a política que nos leva a sonhar em relação ao futuro do país, a pensar no povo de uma maneira mais construtiva, com uma visão mais risonha, a realizar os nossos objectivos. Por isso, eu continuo a ser uma política activa. A minha saída do parlamento do nosso país, para me dedicar com mais tempo à área privada, não somente para me dedicar ao Barclays - como sabe, nesta instituição bancária eu sou presidente do conselho de administração não executiva - é para ter o tempo necessário para os meus projectos pessoais. Eu, durante todos os meus mandatos no governo, não confundia as agendas: os empresários, quando iam ao meu escritório, sabiam que não iam discutir com um concorrente, abriam o jogo e eu encaminhava-os e aconselhava. Não tive oportunidade de me desenvolver como empresária, por uma questão de opção, porque eu queria confiança daqueles que participam na frente empresarial na área de desenvolvimento do país, são eles que fazem a riqueza nacional. Efectivamente, de segunda a sexta-feira, eu tinha três dias só para receber empresários. Agora, chegou o momento de combinar a vida política com o sector privado. Dos três milhões de militantes da Frelimo, apenas temos 191 deputados; dos 22 milhões de moçambicanos, só temos 250 deputados. Há uma grande massa da Frelimo noutras frentes de batalha, onde estão a fazer muito bem o trabalho. Eu também quero experimentar.
Qual é o seu futuro político?
O futuro político da minha vida será ditado pela Frelimo, só o meu partido pode responder a essa pergunta. Eu não sei viver fora da Frelimo, é ali onde me realizo como pessoa.
A Frelimo ainda não tem um candidato às eleições presidenciais de 2014. Se, eventualmente, for indicada para assumir esse desafio, qual será o seu posicionamento?
«Jornal O País»
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