Sua Excelência, a Presidente de Brasil
Excelentíssima presidente do Júri do Prémio Camões
Ilustres membros do governo português
Senhor embaixador de Moçambique e embaixadores dos países da CPLP
Meus senhores e minhas senhoras
Sempre pensei que, em ocasiões como esta, se deve fugir ao estereótipo dos agradecimentos e dedicatórias. Os prémios não se dedicam: partilham-se. Aqui nesta sala estão algumas das pessoas que partilham comigo esta distinção: a minha mãe, Maria de Jesus; a Patrícia, minha mulher; os meus filhos Madyo, Luciana e Rita; estão aqui familiares e amigos, que representam o universo de afectos com quem, dentro e fora de Moçambique, fui tecendo a minha obra. Está aqui o meu editor desde a primeira hora, o Zeferino Coelho, que se ocupou em que eu não me desocupasse nunca dos labores e do prazer da escrita. Todos estes familiares e amigos são co-autores dos meus livros. Mas há alguém com quem quero partilhar especialmente este momento: o meu pai, Fernando Couto. Foi ele que me ensinou não apenas a escrever poemas,mas a viver em poesia. Este prémio pertence a esse sentimento do mundo que ele me legou como uma sombra que resta mesmo depois de tombar a última árvore.
Partilho, finalmente, este momento com a gente anónima de Moçambique, essa multidão que fabrica a nação viva e sonhadora que venho celebrando há mais de trinta anos. Parte dos moçambicanos que, junto comigo, assinam os meus livros não sabe escrever. Muitos não falam sequer português. Mas guardam no seu quotidiano uma dimensão mágica e poética do mundo que ilumina a minha escrita e encanta a minha existência. Toda esta nação de gente tão diversa faz-se aqui representar pelo embaixador de Moçambique, o meu compatriota Jacob Jeremias Nyambir, a quem eu também saúdo como companheiro da luta pela independência nacional.
Caros amigos
Esta cerimónia poderia também ocorrer na Ilha de Moçambique onde Luís Vaz de Camões viveu durante dois anos. Ali o poeta morou pobre, desamparado e sem amigos. Ali, em solo moçambicano, o poeta fez a última revisão dos Lusíadas. Dois anos é muito tempo para alguém que apenas sabia viver em paixão. Talvez ali tivesse encontrado amores, desses que ele dizia “fazerem do amador a coisa amada”. Pode ser que, nas praias do Índico, vivam hoje moçambicanos que trazem, no seu sangue, o sangue do poeta português. Pode ser, enfim, que outras imortalidades, mais mortais e mundanas, se juntem ao nome de Luís Vaz de Camões. Nunca o saberemos, como não saberemos nunca as mil possíveis leituras do nosso destino comum.
Não fosse a intervenção de um amigo, que curiosamente se chamava Couto, talvez Camões tivesse ficado para sempre naquele exílio africano. Foi Diogo Couto que lhe pagou a passagem de regresso a Lisboa. Não tivesse sido assim e aconteceria com ele aquilo que, séculos depois, sucedeu com o poeta luso-brasileiro, António Thomaz Gonzaga que viveu, amou e ficou sepultado na mesma Ilha de Moçambique. Não fosse uma fugaz casualidade de uma visita não prevista de um amigo e poderíamos não ter hoje a grande obra épica lusitana. (Faço um parenteses, para uma confissão: esta exaltação de um improvável parente meu, destina-se apenas a puxar lustro ao clã dos Coutos, num mundo em que ter família conta tanto quanto nos tempos de Camões.)
Os Lusíadas não teriam igualmente sobrevivido se tivessem suscitado um parecer desfavorável da censura da Inquisição que estava acima da decisão do Rei de Portugal. O Censor do Santo Ofício licenciou a edição do livro mas ainda teve algumas reservas por causa da referência que o poeta fazia aos deuses da chamada gente pagã. Mas o censor acabou por ceder pela razão que passo a citar: “ fica, porém, sempre salva a verdade da nossa santa fé, pois que todos os deuses dos gentios são demónios.”
Estamos longe desses tempos. Mas não sei se estamos assim tão afastados dos desconhecimentos, preconceitos e medos sobre os outros e sobre os deuses em que esses outros se sonham. Não temos a censura da Inquisição, mas temos outras censuras sem nome que nos patrulham o pensamento e nos domesticam a ousadia da mudança. Essa mudança que Camões tanto cantou como sendo a substância da vida e do tempo.
Falei da Ilha de Moçambique enquanto metáfora da constelação de nações que falam português, mas que não são faladas, de igual maneira, por esse mesmo idioma. Esquecemo-nos, por vezes, que estas nações integram povos que falam outras línguas e que vivem outras culturas e outros deuses. Somos, enfim, produto de uma História que se fez só por metade. Da narrativa do nosso passado faltam a voz e o rosto dos que, afastados da escrita, não puderam registar outras versões dos nossos encontros e desencontros. Talvez os escritores de hoje possam resgatar as vozes que ficaram esquecidas e ocultas.
Todos sabemos o quanto está ainda por cumprir o vaticínio que o poeta Jorge de Sena atribuiu a Luís de Camões: “que da ilha rasgada pela História uma ilha única se fizesse, sem separação de miséria e luxo, onde todos, de igual modo, pudessem na felicidade fazer morada”.
Pensamos que um prémio serve para celebrar o que já fizemos. Prefiro pensar que se trata de celebrar o que ainda falta fazer. E o quanto nos compete realizar a todos nós para que seja mais viva e mais verdadeira esta família que celebramos na nossa língua comum.
Muito obrigado a todos.
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